O Único Assassinato de Cazuza
de Lima Barreto
você encontra a parte 1 aqui.
...continuando
Os dois calaram-se e,
silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar
remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal acabavam de fumar,
Ponciano disse desalentado:
- E não há remédio.
Hildegardo secundou-o.
- Não acho nenhum.
Continuaram calados alguns
instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:
- Deus não me castigue, mas eu
temo mais matar do que morrer. Não posso compreender como esses políticos, que
andam por aí, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascensão é marcada por
cruzes. Se porventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela
cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a
humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me
tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado
o assassinato. Que acha você?
- Eu também; mas você sabe o que
dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas
costas?
- Não.
- Que todos nós matamos.
Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda
a serenidade:
- Estou de acordo. Já matei
também.
O médico espantou-se e exclamou:
- Você, Cazuza!
- Sim, eu! - confirmou Cazuza.
- Como? Se você ainda agora
mesmo...
- Eu conto a coisa a você. Tinha
eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você sabe que, a bem dizer, não conheci
minha mãe .
- Sei.
- Só me lembro dela no caixão
quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu
cadáver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta. Talvez fosse menos
rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse.
Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas,
em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por
desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém
- o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me
o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.
Notando o amigo que Cazuza dizia
essas palavras com emoção muito forte e os olhos úmidos, cortou-lhe a confissão
dolorosa com um apelo alegre:
- Vamos, Carleto; conta o
assassinato que você perpetrou.
Hildegardo ou Cazuza conteve-se e
começou a narrar.
- Eu tinha sete anos e minha mãe
ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse
morro, depois
da morte de minha mãe...
- Conte a história, homem ! - fez
impaciente o doutor Ponciano.
- A casa, na frente, não se
erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à diferença de nível,
elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que
descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo
a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé
descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando,
soluçando e gritando: "Mamãe, mamãe! Matei, matei..." Os soluços me tomavam
a fala e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: "O
que é, meu filho !. Quem é que você matou?" Afinal, pude dizer:
"Matei um pinto, com o pé."
E contei como o caso se havia
passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de água de flor e mandou-me sentar a
um canto: "Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia." E eu fiquei
muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua, pois
esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que
não é da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque,
até hoje, eu...
Dona Margarida, mulher do doutor
Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o
"ajantarado" estava na mesa.
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