A Igreja do Diabo
Capitulo IV
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava
em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham
alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição.
A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a
conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou
brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às
escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente,
mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer
frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos
avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o
coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam
embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e
viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas,
socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a
cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o,
com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.
O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que
desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês,
varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meterse
na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo,
como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia
todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe
desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso
era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e
concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu,
trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus
ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,
sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda,
como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição
humana.
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